terça-feira, 28 de dezembro de 2010

‘Paulo Hartung é um tirano genial’

23/10/2010

‘Paulo Hartung é um tirano genial’


José Rabelo
Foto capa: Ricardo Medeiros


“Toda a escrita, querendo ou não, é política. A escrita é a continuação da política por outros meios”.
Ph. Soller
  Fotos: Ricardo Medeiros
Para o escritor Maciel de Aguiar, 58 anos, autor da série Os anos de chumbo — composta de 80 livros, escritos de 1968 a 1985 e impressos em mimeógrafo, durante o golpe militar de 1964, e, recentemente, finalista do Prêmio Jabuti —, “Paulo Hartung é um tirano que subjugou os poderes constituídos, amordaçou vários intelectuais, intimidou muitas autoridades, atemorizou os adversários com o DOI-Codi Moral, criou uma ditadura civil em pleno estado democrático de direito e faz pose de anjo querubim”.
Militante das lutas pelas liberdades democráticas e os direitos humanos durante o regime militar no Brasil, Maciel de Aguiar está lançando seu mais recente livro — Nós, os capixabas —, maturado desde a década de 1980, quando viveu no Rio de Janeiro e conviveu com inúmeros capixabas que se notabilizaram em várias áreas do conhecimento e mantiveram uma relação de amor e ódio com o Estado. Também faz o contraponto com a contemporaneidade, tendo por base “Um Novo Espírito Santo”.
Com 42 anos de intensa vida literária, Maciel de Aguiar é autor de 140 livros publicados, destacando-se a série sobre os negros do Vale do Cricaré, que conta a versão oral da escravidão — História dos quilombolas 40 volumes — e presta uma enorme contribuição para uma melhor compreensão dos quase 300 anos de escravidão no Brasil, sobretudo no norte do Espírito Santo, onde o sistema escravocrata foi um dos mais perversos, e com o mérito de resgatar inúmeros personagens “esquecidos” pela História Oficial.
Maciel de Aguiar também é autor dos livros Pelé – o rei da bola, editado em oito idiomas e vendido em dezenas de países, e Niemeyer – o gênio da arquitetura, de igual repercussão no Brasil e no exterior. Nesta entrevista ele fala de sua nova obra, que traz à luz aspectos desconhecidos da vida de vários cidadãos capixabas, e, também, faz um contraponto de cinco capixabas notáveis com o governador Paulo Hartung, a quem classifica de “a maior farsa política da história do Espírito Santo”. E diz que está escrevendo um novo livro, O imperador.
Século Diário: — Quando você achou que seria escritor?
Maciel de Aguiar: — Aos seis anos, em Conceição da Barra, no norte do Espírito Santo, onde meu pai era comerciante, proprietário do Bar Tupy, descobri que, dentre os contumazes fregueses, havia um dinamarquês, de nome Steffen Broby Pontoppidan, que usava curiosos sapatos de duas cores. Ele me contava fascinantes histórias de aventuras nas neves. Após uma viagem à Dinamarca, me trouxe de presente o livro O urso polar, escrito por seu pai, Henrik Pontoppidan. Foi a primeira vez que vi um livro, e ele exerceu uma enorme influência em minha vida. Ficava com aquele exemplar o dia inteiro e fingia que o lia para as demais crianças. Assim, no primeiro ano escolar, queria ser alfabetizado em dinamarquês. Como só meu amigo Steffen conhecia o estranho idioma, fizemos um trato: eu lhe contava histórias dos quilombolas, que ouvia do meu avô Cercinílio, e das inúmeras conversas com ex-escravos no sertão de São Mateus, e ele me ensinava o dinamarquês. Consequentemente, fui reprovado no primeiro ano de escola. Não consegui ser alfabetizado.
— E depois?
— A diretora culpou o livro e deu um ultimato: só seria matriculado se aceitasse ser alfabetizado em português. Como éramos inseparáveis, meu pai engendrou uma solução radical. Num domingo, vínhamos do Quadrado, de canoa a motor pelo rio Cricaré, quando adormeci. No porto da Barra, tive a mais dramática notícia de meus primeiros seis anos: o livro havia caído na água e desaparecido. Acho que chorei uns dez dias. Em seguida, nos mudamos para São Mateus, e, como não tinha mais o livro em dinamarquês, fui alfabetizado em português, mas não sem antes dizer que um dia escreveria um livro em dinamarquês. Acho que, por isso, resolvi ser escritor. Recentemente, recebi uma proposta de uma editora da Dinamarca para publicar o livro Pelé – o rei da bola. Acho que, cinquenta anos depois, vou ter o meu livro de volta. Senão aquele escrito pelo Prêmio Nobel, ao menos um de minha autoria. Faço questão de ir a Copenhague para o lançamento. Será o encontro do menino que queria ser alfabetizado em dinamarquês com um livro de sua autoria. Provavelmente, não ganharei o Prêmio Nobel de Literatura, mas sou o escritor brasileiro que mais chorou por perdê-lo.
— Depois você teve contato com outros livros?
— Acho que, para compensar meu sofrimento, meu pai encomendou a um funcionário da Petrobras, José Vilamário Vilela, que morava na Bahia, o livro Navio negreiro, de Castro Alves. Nas noites de bebedeira no Bar Tupy, ele declamava o célebre poema de Castro Alves de forma emocionante. Assim, fui esquecendo as histórias d’O urso polar e me interessando pela saga dos negros que enfrentaram a escravidão.
— E quando passou a escrever sobre os quilombolas?
— Morando em São Mateus, no final da década de 1950, com o Porto em decadência e os negros com inúmeras histórias de sofrimentos e lutas em busca de liberdade, passei a pesquisar e a escrever sobre as histórias que ouvia de ex-escravos como Balduíno Antônio dos Santos, Manuel Sapucaia ou de Zoroastro Valeriano Rodrigues e José Antônio Jorge, o mestre Zé de Ana, dentre outros que foram esquecidos pela historiografia oficial.
— E essas histórias foram interrompidas durante a ditadura militar?
— Em março de 1968, com a morte de Edson Luís de Lima Souto, os estudantes se mobilizaram contra a ditadura. Havia escrito o poema Saudação estudantil, e o médico Dr. Aldemar Neves mandou dizer que o poema havia sido escolhido pelo Partido Comunista Brasileiro, o Partidão, para ser distribuído no Rio de Janeiro. Foi como juntar fogo e pólvora. No início da década de 1970, fui viver no Rio de Janeiro e entrei, definitivamente, na luta contra o regime ditatorial. Permeei períodos de legalidade, clandestinidade e semiclandestinidade, morando em pensões de quinta categoria, na Lapa, Catete e Gamboa. Por lá, escrevi quase em desespero. Eram canções em homenagem aos que resistiam, aos que eram presos, torturados ou mortos. Destes, muitos corpos ainda não tiveram direito à sepultura. Assim, escrevi a série Os anos de chumbo, composta de 80 pequenos livros, impressos, na época, em mimeógrafo. Vinte anos depois, recuperamos os originais e fizemos a edição de todos os livros e a tetralogia.
— Recentemente, os quatro volumes de Os anos de chumbo foram finalistas do Prêmio Jabuti, um dos mais importantes da literatura brasileira. O que foi escrito durante a ditadura militar já tem o merecido reconhecimento?
— Nem mesmo os corpos dos tidos como desaparecidos ainda não tiveram direito à sepultura e os arquivos da repressão não foram abertos, quanto mais o que foi escrito! A eternidade de duas décadas de tirania no Brasil um dia poderá despertar interesse de pesquisadores e estudiosos, mas não será para os nossos olhos. A condição de finalista do Prêmio Jabuti foi importante, porém achar que a obra será lida ou o que foi escrito contra o regime militar desperta interesse além do previsível está muito distante.
— E quando você concluiu a História dos quilombolas?
— Após a Anistia, ao voltar para São Mateus, retomei o projeto do resgate da versão oral dos negros que resistiram ao sistema escravocrata, concluído em 1995. São 40 pequenos livros. Agora, estamos fazendo a terceira edição. A série também foi condensada em dois volumes. Os treze primeiros livros formam Os últimos Zumbis, e os vinte e sete restantes compõem Brincantes & quilombolas.
— E, agora, esse novo livro, Nós, os capixabas?
— É uma obra maturada na década de 1980, ainda no Rio de Janeiro, quando convivi com muitos capixabas, famosos e nem tanto. Na época, me intrigava o fato de que quase todos tinham mágoa do Estado. Em uns, ela era exacerbada, visceral e, em outros, a insatisfação era mais sutil. Porém, quando provocados, era um poço até aqui de mágoas. Mas todos tinham muito talento e, sobretudo, devotavam ao Rio de Janeiro uma enorme afetividade. A Cidade Maravilhosa os recebia com generosidade, e eles a tinham como sua “terra do coração”.
— São crônicas?
— Sim, são crônicas biográficas. Mas os cinco primeiros personagens estão em contraponto com este “Um Novo Espírito Santo”...
— Com Paulo Hartung como personagem?
— Não, ele não é exatamente um personagem do livro pelo fato de não representar a dignidade, a ética e o caráter dos capixabas biografados. Paulo Hartung é um farsante, despótico e totalitário. Sua história de vida, comparada à de vários capixabas notáveis, serve apenas como contraponto. Neste livro ele é personagem pela ausência de valores.
— Então, quais são os personagens?
— Afonso Cláudio, Graciano Neves, Jones dos Santos Neves, Augusto Ruschi e Orlando Bomfim Filho...
— E como Paulo Hartung se contrapõe a eles?
— Afonso Cláudio de Freitas Rosa, nascido em Mangaraí, Santa Leopoldina, em 2 de agosto de 1859, no florescer da República Federativa do Brasil, foi escolhido, em 20 de novembro de 1889, para exercer o cargo de primeiro presidente do Estado, como eram chamados os governadores na época. Então escritor, poeta, historiador, professor e advogado, Afonso Cláudio era um brilhante intelectual. Mas não aceitou se submeter às oligarquias e, para não se tornar um tirano, disse que não pretendia ter à disposição a Justiça para condenar, a Assembleia para lhe beijar a mão, a imprensa para atacar os inimigos e a polícia para prender e soltar, e, assim, renunciou com 1 ano e 4 meses de mandato. Paulo Hartung fez o contrário, ao primeiro aceno das transnacionais poluidoras e de parte das velhas elites usurpadoras, se apoderou do trono do Palácio Anchieta e se tornou um déspota. Fez o que Afonso Cláudio recusou.
 — E com os demais personagens?
— Graciano dos Santos Neves, nascido na Barra de São Mateus, em 12 de junho de 1868, de tradicional família de origem judaica, contra a qual se insurgiu em função dos negócios de compra e venda de escravos, elegeu-se deputado federal aos 22 anos. Também foi professor, calígrafo e biólogo. Em 23 de maio de 1896, assumiu como primeiro presidente eleito pelo voto popular e enfrentou a fúria da conservadora elite escravocrata do Norte. Assim, com 1 ano e 4 meses de mandato, também renunciou. Certa feita, disse: “No Espírito Santo, cultua-se uma sociedade política que serve aos poderosos com olhos de cego, ouve os reclames do povo com ouvidos de surdo e tem o faro de uma velha raposa que conhece o caminho do galinheiro”. E, a cada dia, se atritava com o servilismo, a bajulação e a falta de critério com que os jornais e os detentores do poder se relacionavam. Tentou, em vão, acabar com o beija-mão palaciano e a “imprensa de conveniência”. Aborrecido com a impossibilidade de realizar as obras prometidas, em função da oposição dos conservadores, voltou a São Mateus e redigiu um “ofício”, em 22 de agosto de 1897, que só foi aceito pelo parlamento em 23 de setembro, renunciando ao cargo de presidente do Estado. A Assembleia ficou 30 dias sem saber o que fazer com o “documento”. Alguns alegavam o fato de o papel utilizado ser “para embrulho”. Conta-se, no entanto, que o mesmo era, na verdade, “para finalidades higiênicas”. Com a renúncia, Graciano Neves foi para o Rio de Janeiro ser diretor do Jardim Botânico e professor do Colégio Pedro II, tendo como companheiro Euclides da Cunha. Na ocasião, havia escrito o livro Doutrina do engrossamento, uma sátira mordaz às elites dirigentes do Espírito Santo e do País, também conhecido por “Tratado de como bajular os poderosos para se manter no poder”. A primeira edição foi impressa em São Mateus, em 1899. E foi o primeiro escritor brasileiro a citar Karl Marx. O fato interessante dá-se quando ele previu o risco de, no Espírito Santo, os “governos tornarem-se irritados e ferozes”, semelhantes ao animal a que La Fontaine se referiu: C’est un animal bien méchant. Quand on l’attaque, il se defend. Então, Graciano Neves anteviu o surgimento do “animal perverso” há exatos 110 anos antes de Paulo Hartung chegar ao Palácio Anchieta. E, se ele enviou a renúncia à Assembleia Legislativa de então em papel para “finalidades higiênicas”, Paulo Hartung, hoje, faz dela sua latrina. Então, nesse caso, há, também, alguma similaridade.
— E com Jones dos Santos Neves?
 — O contraponto com Jones dos Santos Neves está no fato de o ex-governador ter exercido a função de Interventor Federal durante a ditadura de Vargas. Mas, de 1951 a 1955, fez o governo mais democrático de nossa história e, mesmo tendo enfrentado uma oposição formada por ferrenhos adversários, deputados de excelente oratória que, na Assembleia Legislativa, o combatiam implacavelmente, como Eurico Rezende, Clóvis Stenzel, Oswaldo Zanelo, Floriano Rubim, Anacleto Rizo e Custódio Tristão, o ex-governador Jones dos Santos Neves manteve-se no eixo da normalidade constitucional e da civilidade, estabelecendo uma relação política sem virulência e procurando conduzir os destinos do Estado do Espírito Santo como havia proposto. No discurso de posse, em 31 de janeiro de 1951, antevendo o que aconteceria 50 anos depois, disse que “O Espírito Santo carece de paz e anseia por uma trégua política que lhe permita retomar os caminhos ensolarados do seu progresso. Não é possível que persistamos, por mais tempo, nessa autofagia cruel, reminiscências primitivas talvez da tribo dos maracajás que habitavam estas plagas, e continuemos, como aqueles ‘gatos selvagens’, a nos estraçalhar uns aos outros”. Então, Jones dos Santos Neves serviu a uma ditadura, foi interventor, mas fez o governo mais democrático e transformador do Espírito Santo. Meio século após, Paulo Hartung, que diz haver resistido à ditadura militar pós-1964, faz o governo mais ditatorial de nossa história. Implantou uma ditadura civil em pleno estado democrático de direito.
 — E qual o contraponto com Augusto Ruschi?
—  A luta de Augusto Ruschi contra a devastação da Mata Atlântica havia repercutido, tornando-o um dos mais conhecidos agitadores ecológicos do planeta. E, para manter a Reserva Biológica de Santa Lúcia, em Santa Teresa, ameaçada de ser transformada em plantação de palmito, ele quase tomou uma atitude primitiva e extrema: ameaçou invadir o Palácio Anchieta e matar o governador Élcio Álvares. O contraponto com Paulo Hartung é simples: por causa da ameaça da transformação de uma floresta natural em plantação de palmito, Augusato Ruschi ameaçou matar o governador. Hoje, caso ele fosse vivo, com a devastação provocada pelas transnacionais poluidoras e a cumplicidade do governo do Estado, por certo teria que matar Paulo Hartung. Embora também pudesse ser abatido pela imprensa amiga e pelo DOI-Codi Moral, antes mesmo de subir as escadas do Palácio Anchieta, com a acusação de “membro do crime organizado”.
 — E com Orlando Bomfim Júnior?
— Orlando da Silva Rosa Bomfim Júnior foi um mártir das lutas pela liberdade durante o regime militar. Seu desaparecimento serviu para que a sociedade civil e algumas instituições começassem a cobrar explicações sobre outros presos políticos, de quem também não se tinha notícia. O governo militar preferia dar versões fantasiosas, e as Forças Armadas se negavam a responder aos pedidos. Após a família acionar a Arquidiocese do Rio de Janeiro e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB, surgem indícios de sua morte e espalham-se boatos e notícias não oficiais. Enfim, um clima de terror toma conta do País. Os militares preferem o silêncio e expressam total desprezo pelo cidadão civil, fazendo com que os órgãos de segurança arbitrassem as sentenças de prisão, tortura, banimento e morte. Assim, juntando-se ao paulista Wladmir Herzog, eles foram escolhidos pelas respectivas Assembleias Legislativas do Espírito Santo e de São Paulo para dar nome à criação de comendas dos direitos humanos, para homenagear os que se destacassem nas lutas contra o arbítrio, a censura e as injustiças sociais. Um ideal que deveria se constituir num compromisso de todas as gerações, para que o desrespeito à democracia, como os vividos no Brasil de 1964 a 1985, não se repetisse. No Estado do Espírito Santo, um projeto de lei nesse sentido tramitou na Assembleia Legislativa em 21 de junho de 1988. E, ao invés da comenda aprovada pelo parlamento paulista, que todo ano homenageia pessoas que se dedicam à causa dos direitos humanos, a Comenda Orlando da Silva Rosa Bomfim Júnior só foi concedida uma única vez. A iniciativa acabou relegada ao esquecimento pelo próprio parlamentar que a criou: Paulo Hartung. Este, em 2003, já na condição de governador do Estado, alertado sobre o não cumprimento da lei de sua autoria, a desprezou totalmente. Foi melhor assim: já pensou o ditador Paulo Hartung, criador das prisões em contêineres, promotor do maior caos estabelecido na segurança pública do Estado do Espírito Santo, denunciado na ONU por crimes contra os direitos humanos, as mortes por esquartejamento e a tortura nos presídios, entregando a Comenda Orlando Bomfim? Ainda bem que ela nunca mais foi entregue... Mas a similaridade dos dois é terem a mesma origem política, o Partidão. Se bem que Paulo Hartung usou o PCB conforme a conveniência e depois o descartou, assim como, durante sua trajetória, usou os demais partidos, MDB, PPS, PSB, PMDB, sempre de acordo com a conjuntura. Certa feita, ele tentou entrar para o PT, mas nós o barramos, montamos barricada. Mas não teve jeito, hoje ele faz o quer com o PT de Vitória. Empurrou pela goela da militância do partido o vice-prefeito de João Coser, sem o menor lastro político. Depois, excluiu João Coser da sucessão estadual de forma humilhante e o colocou no final da fila. Paulo Hartung é de uma maldade letal.
 — E os outros personagens?
— Os demais personagens não são contemporâneos de Paulo Hartung e, possivelmente, ele não sabe que todos nasceram no Espírito Santo. São artistas, intelectuais, desportistas, profissionais liberais que dignificaram o Estado, mas nem todos tiveram o devido reconhecimento dos governantes. Alguns carregaram indeléveis mágoas, e outros não deixaram de expressar certa afetividade para com sua terra natal, mesmo com os sentimentos de amor e ódio. Jones dos Santos Neves foi quem melhor nos definiu: “gatos selvagens”. Há muito nos engalfinhamos em lutas fratricidas pelo poder, fomos dominados pelas velhas oligarquias usurpadoras, embora tenhamos derrotado o mais temido corsário que atemorizou os mares e as populações costeiras do mundo, o pirata inglês Thomas Cavendisch — esta foi a única vez que nos unimos.
— Na condição de intelectual engajado nas lutas pela cultura, em defesa da memória histórica e pelas liberdades democráticas, qual sua avaliação do governo Paulo Hartung?
 — Quando li o slogan “Um Novo Espírito Santo”, tive o pressentimento da reedição do fatídico “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Paulo Hartung, provavelmente com saudade sociológica do regime militar ou inspirado nele, estabeleceu que existia o “Velho Espírito Santo”, tomado pela corrupção, o crime organizado e os desmandos administrativos, que via pelo retrovisor. Assim, escolheu algumas figuras carimbadas para o abjeto papel de Geni, em quem se pode jogar pedras e excrementos, e criou um divisor de águas. Como os militares que pensaram o golpe de 1964 estabeleceram que, a partir de 1 de abril, era preciso amar o Brasil ou deixá-lo, este  “Um Novo Espírito Santo” tem, conceitualmente, a mesma simbologia. Assim, é preciso execrar o “Velho Espírito Santo” emblematicamente como um exemplo do mal e, em nome do bem, distribuir salvo-condutos para os que forem escolhidos para a corte do Imperador. Assim, estrategicamente, José Carlos Gratz foi uma peça fundamental no projeto político de Paulo Hartung, que o satanizou e o escolheu para o papel de Geni. Caso não tivesse existido Gratz, o Paulo Hartung estaria perdido. Quem ele poderia colocar para fazer esse papel? Gratz foi a joia preciosa e necessária para a coroa do Imperador. E, quanto mais Gratz fazia loucuras, rasgava intimação em frente às câmaras da TV, dizia que era invencível e outras sandices, mais Paulo Hartung gostava. A imprensa amiga também teve um papel fundamental nesse cenário pitoresco, assim como algumas instituições vitais como a OAB capixaba, o Ministério Público Estadual e até a Igreja católica, com dois mil anos de experiência, caiu na lábia de Paulo Hartung. Por isso, ele se blindou, estabeleceu o fim de seu reinado em 2025, posou de exclusivista da moralidade e estabeleceu que todos aqueles que tinham relação com o “Velho Espírito Santo” pertenciam ao crime organizado e, consequentemente, precisavam ser jogados na vala comum. Para tal, criou uma espécie de DOI-Codi Moral e fez do marketing do combate ao crime organizado seu principal cavalo de batalha. Dai em diante, subjugou as autoridades, intimidou as instituições e foi celebrado Imperador.
— Na sua opinião, o que mais possibilitou esse estado de exceção, em plena democracia?
— Paulo Hartung deixou grassar a sordidez como forma de se tornar inimputável. É um gênio da falácia e um estrategista do infortúnio. Montou um invejável cofre da maldade com essa geringonça eletrônica chamada guardião, que funciona como pau de arrara auricular, e é, sobretudo, um homem obcecado pela vingança. O grampo no jornal A Gazeta é um exemplo tácito. Tinha em curso a CPI na Assembléia, e, quando estourou o escândalo da escuta clandestina dos jornalistas de A Gazeta, pensei que Paulo Hartung fosse cair, mas ele teve muita habilidade. A CPI acabou em suculenta pizza e até o relatório sumiu, e ninguém foi punido. Paulo Hartung é um craque do jogo da política, tem a habilidade de um Garrincha no campo de futebol. O núcleo duro de seu governo é ele diante de um espelho de quatro faces. Vigia a própria sombra e, como não confia em ninguém, é atormentado por um sentimento cruel: não tem amigo leal pelo fato de não cultivar a lealdade. Os que fazem parte de sua relação o temem 24 horas por dia e são liderados pelo estigma do medo. Quando alguém dessa relação temerária tenta correr em zigue-zaque para escapar de sua alça de mira, ele é implacável, fulmina-o com a precisão de um atirador de elite e, preferencialmente, pelas costas. Portanto é muito difícil estudar os motivos que fizeram com que ele criasse uma ditadura em plena democracia, tendo-o ainda no poder. Estou escrevendo O imperador. Será um livro para tentar decifrar psicologicamente seu pensamento e o modus operandi de seu governo. Paulo Hartung é um personagem excepcional. Qualquer escritor com um mínimo de inteligência não o deixaria passar incólume. Caso estivesse vivo, Jorge Amado escreveria sobre ele, e Dias Gomes faria uma festa. Não posso perder essa oportunidade, mesmo não tendo a competência dos mestres.

— Então, quem é Paulo Hartung?
— É um belo personagem, tão controverso quanto amado e odiado. Um gênio da cena política capixaba e, se fosse de um estado com mais peso político, seria candidatíssimo à presidência da República. Ele é um político obcecado pelo poder e implacável com os adversários. Um estrategista eleitoral que não erra em eleição, não entra em bola dividida, não dá declaração para gerar instabilidade, foge dos problemas de repercussão na mídia como o diabo, da cruz. Mede suas ações de acordo com o coeficiente eleitoral em questão, sabe mandar recados atemorizantes e não deixa impressão digital. Paulo Hartung destruiu todos os inimigos durante sua vida pública. Nas eleições de 2010, ele fez o inimaginável, derrotou os Mauro, pai e filho, embora não os tenha matado. Elegeu César Colnago, Lelo Coimbra, Ricardo Ferraço e quase todos os deputados estaduais e federais. Mas eleger Rodney Miranda, um desconhecido, com 65 mil votos, foi seu maior feito. O risco é de Rodney Miranda se achar um fenômeno. Essas eleições coroaram a genialidade de Paulo Hartung. Ele contabilizou apenas duas meias derrotas: não conseguiu derrotar Rose de Freitas e Magno Malta. Assim, não terá adversário com mandato nos próximos quatro anos. Paulo Hartung não faz o tipo falastrão, ao contrário, ele fala baixo, é educadíssimo, tem gestos comedidos, não deixa os cabelos em desalinho e está sempre com barba bem feita. Quando aparece na TV, magnetiza o telespectador com seu gestual de anjo querubim. Usa roupas impecáveis, é incapaz de uma deselegância em público com quem quer que seja, e quem o vê pela primeira vez o acha um gentleman. Por isso, é um personagem fascinante.
— E quais os defeitos?
— Muitos, mas é uma panela de Teflon, nada pega. Quantos já tentaram colar um defeito em sua biografia? Como escritor, com um mínimo de senso prático da profissão, tenho que me encantar pelo personagem, seja ele quem for. Até o mais virulento, o mais despótico e o mais sanguinário. Tenho que encontrar uma forma de construir uma história sem exercer o papel de juiz. Como escritor, não posso condenar Paulo Hartung. Preciso construir uma história cujo personagem principal possa provocar ódio e paixão ao mesmo tempo. O que Odorico Paraguaçu diria de Dias Gomes? É claro que Dias Gomes sabia que Odorico era o protótipo do político salafrário, velhaco, cafajeste, corrupto e pusilânime. Não vou construir O imperador para execrar Paulo Hartung. O leitor é que terá de tirar as conclusões. Quero construir um personagem que possa despertar admiração e ódio. Agora, estou escrevendo o capitulo de sua possível solidão após a posse de Renato Casagrande. Imagino inúmeros problemas existenciais, medos, virtudes e paixões. Ele sabe que ficará sem o poder de mando. Será a primeira vez que estará na planície. São 27 anos no alto do fuste, e isso vai atormentá-lo. Ele sabe que tinha um mandato de senador e, pela primeira vez, errou. E o que mais o atormenta é que ele poderia sepultar Magno Malta, e perdeu a oportunidade. Isso pode fazer a diferença em suas atitudes. E sabe, também, que construiu muitos inimigos. Mas o que pesa contra ele é a desconfiança. O PT não confia nele, nem Lula, nem Dilma, nem Zé Dirceu. No PSDB, é a mesma coisa, mesmo sendo ele do ninho tucano, em nenhuma das hipóteses ele terá um ministério, uma diretoria da Petrobras ou um cargo de primeiro escalão. Terá que sobreviver fazendo o que mais entende: atemorizar. Já mandou um emissário propagar que pode ser candidato a prefeito de Vitória em 2012, só para fazer o PT tremer de medo. Não vai existir ninguém com a capacidade de Paulo Hartung. Por isso, ele é um personagem pronto. É certo que, dependendo das circunstâncias, ele pode não gostar da história, mas não farei juízo de valor. Para escrever, tenho que me encantar pelo personagem, preciso rir de suas trapaças, seus golpes geniais, suas falácias e seus truques. O escritor precisa se apaixonar pelo personagem, mesmo sendo ele um tirano. Estou construindo uma história com uma boa dose de humor, mesmo com todas as denúncias de abuso de poder e culto à personalidade. Não podia ser diferente.

 — Podemos esperar O imperador com fatos que ainda não foram divulgados?
— Estou iniciando o livro pelo final da história de oito anos de poder absoluto. Os últimos dias do governador Paulo Hartung, na solidão do salão aristocrático do Palácio Anchieta, ao perceber o fim de seu reinado, com um turbilhão de lembranças povoando sua cabeça, além da dúvida de como será seu relacionamento com o governador Renato Casagrande à possibilidade de se tornar um cidadão comum e encontrar-se, um dia de sábado, no Restaurante Pirão, na Praia do Canto, com José Carlos Gratz. Mas não posso dar mais detalhes, é segredo literário. Gostaria de presenciar a cena de sua solidão, no gabinete, esvaziando as gavetas, para compor melhor o personagem. O fato de nenhum ditador se preparar para esse momento o fará perceber que tudo passou muito rápido. Na literatura da História Universal, todos aqueles que lideraram sob o estigma do medo, tiveram fins trágicos, e muitos foram vitimados por fatores psicológicos. Possivelmente Paulo Hartung já se arrepende de deixar a cadeira garantida no Senado da República para ficar na planície. Sabe que cometeu um erro estratégico que vai lhe dar muitos dissabores. Só que, agora, é real: o governante mais poderoso e temido da história do Espírito Santo, aquele que subjugou, atemorizou e execrou aliados, inimigos, poderes, instituições, imprensa, etc, vai, finalmente, se ver despido. A cena é dramática.
 — Acha que Paulo Hartung é mesmo um grande personagem para um livro?
 — Para o tipo de livro que pretendo não tenho dúvida. Ele é um gênio talentosíssimo da arte da política. Nem mesmo nas monarquias absolutistas, originadas de revoluções burguesas incompletas, houve alguém capaz de criar formas tão discricionárias e, ao mesmo tempo, dissimular-se como defensor das liberdades individuais e coletivas. Assim, em nome da necessidade de defender o bem, foram cometidas as maiores arbitrariedades em pleno estado democrático de direito. Nunca a mentira foi tão intensamente veiculada e difundida à exaustão, conforme a teoria Goebells, o sinistro ministro de Hitler e criador da teoria do engodo, que é a mentira repetida várias vezes até se tornar uma incontestável verdade. E, repetindo o que Napoleão Bonaparte implantou na Europa do último quartel do século XVIII, combinando elementos do pensamento iluminista de Rousseau, quando nenhuma classe ou grupo tinha poder suficiente para ser hegemônico, deixando a um líder pragmático e habilidoso a missão de mediar as diversas forças sociais, Paulo Hartung impôs a repressão aos intelectuais, a censura aos órgãos de comunicação e subjugou autoridades e instituições. Ou seja, criou uma ditadura civil em plena democracia. Assim, ao estabelecer as metas de um governo discricionário, criado a partir do diletantismo de “Um Novo Espírito Santo”, ele fez o Estado retroceder ao ano de 1851, época em que o bonapartismo incorporou as reivindicações do desenvolvimento industrial. Agora, Paulo Hartung incorporou a descoberta do pré-sal e fez e permitiu que o território capixaba fosse tomado de assalto pelas transnacionais poluidoras. Recentemente, para disfarçar a parceria espúria com as grandes empresas, que patrocinam as campanhas da maioria dos agentes políticos, o Palácio Anchiet a montou um teatro de marionetes. O resultado está estampado nas eleições de 2010, sobretudo para a Assembleia Legislativa. Paulo Hartung foi o maior vencedor, elegeu quem quis e derrotou os desafetos. Mesmo assim poderá se surpreender com o desempenho do futuro governador Renato Casagrande, que chegou ao topo do poder e vai querer usar a própria caneta. Mas essa será uma outra história.
— Quando será o lançamento de Nós, os capixabas, e como fazer para adquirir o livro?
—  O lançamento está sendo programado para a casa de show Spirito Jazz, que fica na Praia do Canto, em Vitória, mas também devo fazê-lo no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Para adquirir o livro, basta procurar uma livraria ou fazer contato pelo e-mail memorialeditora@terra.com.br. Ele custa R$35,00, já com as despesas de envio pelos correios.

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